Talhado sob as pálpebras

Naquela zona o passado e o futuro não existiam. Apenas havia o presente. Quando passava, deixava de se tornar presente e logo parava de existir, sem espaço ou necessidade de existência, era engolido pela continuidade dos fatos.  Ao continuar, engolindo o passado, se preenchia, renascendo a cada milésimo, caracterizava o presente, sendo assim o futuro se tornava desnecessário. Afinal, o futuro só se torna útil quando algo é previsível, naquela zona nada era previsível.  Apenas o imprevisível presente era certeza.  Sendo assim, ali a realidade era com uma areia sendo despejada em sua mão, escapando entre seus dedos e se renovando em um ciclo infinito. E graças a isso, essa zona é responsável por gerar boa parte da felicidade dos seres humanos. Todos precisam dela e não existem sem fechar os olhos.

No presente existia um cheiro. O cheiro era tão doce que queimava as narinas, enjoativo a ponto de dar enxaqueca. Mas o cheiro logo parou de existir, sendo engolido pelo tato, que não caberia no mesmo presente que o cheiro. Pelo tato se distinguia subidas íngremes e descidas suaves, elevações continuas, separadas por uma depressão macia e quente como vapor.  Passava a mão pelo mundo? Seu dedo brincava por entre as montanhas e as planícies quentes, depois de um dia inteiro recebendo a luz do sol? Não, a especulação é um erro aqui dentro. Não eram montanhas, afinal ele não era um deus. Não sendo uma entidade divina, o mortal que era não merecia passar o dedo por entre aquelas costelas, subindo e descendo, até alcançar a região plana do tórax. Mas tudo bem, afinal aquela zona não existia. Ser o que não era se tornava algo comum ali dentro. Esse presente continuou e o ciclo se renovou. Era preenchido agora pela visão, que tomava espaço demais para caber junto com o tato, naquele tão apertado presente. A visão em uma realidade onde o passado existia, seria um rosto conhecido, já visto antes. Mas, naquela realidade, o antes não existia, sendo assim, via o rosto pela primeira vez. O ar escapou de seus pulmões e ele quase perdeu o rosto. Enquanto o ar saia, a visão se tornara passado e deixará de existir. O ar expelido não cabia no mesmo presente que a visão. Mas o ar logo cedeu seu lugar, e ele viu o rosto novamente, pela primeira vez, naquele presente infinito.

Havia as pupilas, como profundos e inexplorados oceanos, sediados por uma areia castanha, íris cuidadosamente desenhadas, se ramificavam. Ele podia ver o movimento das ondas, a força do mar, sentir a porosidade da areia.  Os cachos pendiam da face, espirais infinitas, que ondulavam como serpentes, destilando o veneno que ele tanto precisava. A boca estampada naquele rosto era de um vermelho vivo, e parecia sempre úmida, possuindo brilho. Tudo aquilo cabia inacreditavelmente no presente. A visão enfim escapou entre seus dedos, como areia, parou de existir para dar lugar ao novo e fixo presente.
Seus olhos se abriram e ele foi jogado á realidade. Ali existia um passado para se arrepender, um presente para preencher e um futuro, incerto demais para trazer alguma segurança e previsível demais para romper a letargia.



A face não existia mais. 
Nunca existiu. 

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