W.
Os arcos sobem e descem por cima
da corda friccionada ao máximo, rígida como um músculo. Mais três violinos e um
violoncelo incorporam a orquestra, regida pelos espasmos do maestro, suas
feições se dobram junto a seus movimentos, em caretas devido ao enorme esforço,
seu cabelo despenteado a ponta para cima, um emaranhado grisalho e disperso.
Fora de contexto poderia ser confundido com um louco. O som se espalha pelo
longo salão, retumbante. Apesar disso, a orquestra está longe de ser o foco
principal da noite.
Os convidados rompem
constantemente o contato visual entre si, sem interromper as conversas, mudando
sutilmente seus focos para cima. Observam as rosas que pendem inacreditavelmente
do teto, um jardim suspenso que toma toda extensão do telhado interno, os
botões das rosas apontam para o chão, seus caules ocultos pelas pétalas, dão a
visão de um mar vermelho que se espalha por toda a superfície, estático. As
poucas luzes presentes no ambiente se encontram aparentemente atrás de toda
aquela estrutura, fazendo com que a iluminação passe primeiro pelas rosas,
funcionando com uma espécie de filtro, banha o salão com uma fraca luz
esmeralda, dando a falsa impressão de que as flores emitem luz.
Na entrada do prédio, ao lado das
gigantescas portas se encontram duas escadas paralelas, feitas de mármore
negro, em contraste com o corrimão de ouro, sobem em uma curvatura, se
encontrando em uma sacada que dá acessos a vitrais, posicionados ali para que o
jardim suspenso seja visto da rua, uma vitrine para que os plebeus possam cobiçar
tudo aquilo. Os vidros parecem posicionados para aumentar a sensação de
privilégio que todos sentem embaixo daquelas rosas. De frente para as portas de entrada um tapete
de veludo branco corre pelo chão negro, até a outra extremidade, onde o maestro
rege a orquestra de costas para plateia, em cima de um palco de madeira
clássico. Em volta do tapete estão espalhadas as mesas com os convidados e os
petiscos servidos. É notável que até
mesmo a disposição do salão foge dos padrões, uma prédio com uma extensão
vertical maior do que a horizontal. A
responsável por aquele salão surreal era madame W. , uma arquiteta da mais alta
sociedade, reconhecida pelas suas estruturas sem precedentes na historia.
Dentro de seu vestido sem mangas,
um tecido púrpura, estampado com vetores negros, as espirais espalhadas
estrategicamente, de modo que todas se encontrem no seu busto, realçando seus
seios, parcialmente a amostra graças ao decote, ela exala um erotismo
hipnótico. Sua face é iluminada de baixo para cima, pela vela que queima na
mesa, os contornos de seu rosto anguloso se destacam. As maças do rosto são notáveis, os ossos
claramente visíveis por baixo da pele, uma visão que acentua sua magreza. Olhos felinos, enormes em comparação
a sua diminuta boca vermelha e seu nariz fino, mas ainda sim proporcionais, em
uma harmonia de formas que fogem da beleza humana, era literalmente divina. De
frente para ela, talvez me entregando ao clima onírico que o ambiente invocava,
me lembrava do mito de Psique. A mortal que ofendeu Vênus com sua beleza.
Bebo vinho, enquanto alterno minha
atenção entre ela e as rosas, tentando escolher um monumento de devoção.
Naquele momento noto que o aroma das rosas no ar se torna cada vez mais
palpável, doce a ponto de quase interferir no paladar.
- Não passam de engradados,
contendo uma porção de terra em cada um dos espaços, onde as sementes foram
plantadas. Tudo é suspenso por uma estrutura de vidro presa ao teto, sobreposta
por cima desses engradados, que pressiona o jardim contra o concreto, impedindo
que caia. Na superfície do vidro existem orifícios cuidadosamente calculados,
por onde as rosas cresceram e se projetam a ponto de esconder toda a estrutura.
- É simplesmente... Indescritível.
Estou sem palavras para expressar a magnitude do seu projeto. Sem duvidas,
estamos na presença da próxima capela sistina.
Seus lábios se estreitam em um
sorriso
– Fico feliz pelo reconhecimento, Jack.
Ela afasta delicadamente a cadeira
da mesa, se levantando. Em meio a toda sua sensualidade, o que mais me chama à
atenção é o modo como se prostra. Quando ela se coloca de pé suas costas nuas,
graças a abertura do vestido, formam um arco, em uma postura ereta e impecável, que exala superioridade. Seus braços se movem ao lado do corpo
harmonicamente, como em uma dança. É uma bailarina. Se aproxima de mim, suas
mãos envolvem delicadamente minha mão em uma concha, podia sentir o calor de
sua pele pálida. Sua mão esquerda desliza, enquanto ela se vira, e me conduz para
fora da mesa em um convite silencioso.
Extasiado, caminho com ela logo a
minha frente, nossas mãos juntas, enquanto passamos em torno das mesas,
furtivos. Continua me conduzindo, em direção ao fim do salão vertical, próximo
ao palco de onde o maestro ainda rege. Ela contorna a grande estrutura de
madeira e para diante da parede. O som dos instrumentos eram ensurdecedores
ali, amplificados por altos falantes próximos. Ela para de frente para a
parede, aparentemente chegou ao seu destino. Só percebo o real motivo de sua
parada quando analiso minuciosamente a parede, percebendo que existe um
orifício no meio do concreto, do mesmo diâmetro que uma bola de tênis. W.
Levanta a mão livre em direção ao buraco, encaixando uma chave ali dentro. Me
pergunto quando e onde ela havia pego aquela chave. Talvez realmente esteja
embriagado demais com tudo isso. Depois de girar a chave ela empurra a parede e
um bloco de concreto do tamanho de uma porta se afasta, revelando o que seria
uma entrada. Ela me conduz em direção à escuridão, enquanto pasmo, olho para
trás, em direção aos convidados em uma mesa próxima, esperando que eles se levantem
tão incrédulos quanto eu. Sequer mudam de postura.
Estamos em um cômodo vazio, as
paredes brancas e sem janelas me dão a nítida sensação de estar no interior de
um cubo. A porta por onde entrei simplesmente desapareceu. A claustrofobia
quase me faz perder a compostura, mas percebo que aquele pânico é infantil. Por
mais irreal que pareça, é só mais um dos projetos arquitetônicos que levaram W.
até onde ela está hoje. Penso assim até
que sinto a perfuração no centro de minhas costas. A estocada de algo
pontiagudo e maciço. Sinto enquanto meu corpo é tirado do chão, como se não
pesasse mais do que uma pena. Sou virado 180 graus, olhando para baixo.
Madame W. se encontra alguns
metros abaixo de mim. De suas costas se projetam galhos, como tentáculos. A
madeira é grossa como o tronco de carvalho e pela sua superfície se espalham
botões de rosas, rechonchudos, pendem em direção ao chão, a ponto de
desabrocharem. Existem três galhos de cada lado de seu corpo. Devem ter pelo
menos um metro de extensão, a extremidade de todos eles parece talhada à mão,
como pontas de lanças, todos virados para mim, um arco em torno do seu corpo.
O mais próximo de sua nuca me suspende no ar, fazendo uma curva, não consigo
ver sua extremidade. Provavelmentee porque está cravada em minha carne.
Literalmente no núcleo de onde tudo aquilo está enraizado,
Madame W. sorri enquanto meu sangue pinga em seus dedos.
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