Última Manhã

Abriu subitamente os olhos. Estava sentado, a televisão parecia enorme a sua frente, rodava. A tontura demorou alguns segundos para passar. Conseguia sentir cada centímetros de suas pálpebras, a pele em volta dos globos oculares repuxando, em pequenas dobras. Esfregou os olhos, esperando que aquilo passasse, inutilmente. Contraiu os lábios por instinto, os puxando para dentro da boca, sentia que alguns pedaços estavam em carne viva. Passou a língua por toda a construção de metal anexada aos seus dentes. Fora ao forte gosto amargo, sentia algo entre os dentes e o ferro, uma sensação familiar. Tentou tirar os restos de unha com os dedos, inutilmente. Só então se deu conta de como seus dedos ardiam. Olhou para eles, vendo o contorno vinho, acompanhando toda a extremidade do que sobrara da unha. Seu antebraço também ardia em alguns pontos, onde existiam semicírculos esverdeados e linhas em relevo, que começavam do pulso e iam até a articulação, se espalhando aleatoriamente por toda a pele.

Sentia-se horrivelmente lúcido. Como se tivesse acordado a dias e não precisasse dormir. Levantou-se, o que fez a tontura voltar por alguns segundos, esbarrou na xícara, que tombou o liquido frio no seu pé, escorrendo para boa parte do colchão. O cheiro amargo invadiu suas narinas de forma nauseante.

Olhou a cena por alguns segundos, até que uma memória invadiu sua visão. Sentia que algo soltava o peso no seu colo, escorando as costas no seu ombro. Tinha pouco mais que seu próprio peso e pouco menos que sua altura. Embora estivesse muito junto, podia ver perfeitamente os contornos dos cabelos, como se visse de um ângulo diferente do que seu próprio corpo estava. Eram negros, as pontas saindo pelos lados do crânio, em semicírculos. Ouviu uma risada contida, tipica de situações sociais. O corpo a sua frente se contraiu brevemente, parecia conversar com alguém. Supostamente, alguém deveria estar a frente dos dois corpos, mas simplesmente não processava o que estava além dele. Sua visão passou para o de duas mãos. Uma delas era a sua própria. Sulcos se espalhavam pela pele amarelada. As unhas em um formato irregular. A outra mão se aproximava da sua. A pele cor de bronze era alguns tons mais escura que sua própria pele. Os dedos eram do mesmo tamanho. Ambas as mãos se tocaram. Sentiu a textura macia e a temperatura quente da pele, um sentimento sufocante e crescente, que tomou o espaço da visão e dissolveu tudo.

Se sentou no sofá, cada vez mais nauseado pelo cheiro do café. Não sabia dizer se a lembrança era real. A própria cena a sua frente não parecia exatamente real. A lembrança parecia muito mais plausível que aquela sala. A sala parecia um absurdo, um sacrilégio. Uma piada de mau gosto estar ali, sentado.

Mas sabia que a sala era real.

A lembrança não.

Ainda sabia. 

Naquele tempo, sabia. 

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