Ele

Ele emergiu do chão. Simplesmente saiu do concreto, de modo intangível, sem danificá-lo. Vestia um manto branco. Não, era mais que isso. Era a ausência de vida, como a tonalidade na pele de alguém suspenso por uma corda no pescoço, encontrado dias depois.

Enrugado, pavoroso. Do manto saia uma toca, a qual cobria sua face. Seus braços eram apenas ossos, ao menos deduzi isso, porque a cor era totalmente diferente da de um osso. O desespero, a ansiedade, a insegurança, o medo, a agonia; nada disso tinha cor, porém aquela tonalidade representava de modo impecável tais sentimentos. Brandia uma lâmina vinho. Não era bem uma lâmina, era algo mais gordo, mais pesado, mais flácido, sustentado por um cajado: um pedaço de carne em meia lua. Carne humana. Envolto no mesmo existiam cordões esverdeados: veias. Veias que pulsavam sem a mínima sincronia, e todas pareciam a ponto de estourar.

Carregava um grande coração pulsante na ponta de seu cajado. Sentia que ele romperia minha carne. Carne não podia romper carne: era impossível, mas eu sabia que aconteceria. Sabia que sua arma estava há minutos, se não segundos, de inserir agonia em minhas entranhas. Ele inclinou a cabeça para trás e o manto caiu. Esperei a face do horror, mas eram apenas imagens projetadas: no lugar de seu crânio, existia uma cena.



Ele não tinha pescoço, sendo assim apenas existia a cena, ali, flutuando acima do manto. Fixei-me na imagem. Arrependeria-me daquilo para sempre. Revivi o pior momento de minha vida. O dia em que matei aquela criança.. meu próprio filho. Ele havia derramado água em meu tão valioso computador, a obra de minha vida estava lá: o livro que demorei longos cinco anos para escrever... Ele derramou apenas para ver a fumaça subir, apenas para isso. Não tinha sequer uma cópia daquilo. Nada. Cinco anos de minha vida se esvaiam, em cinco segundos. Avancei contra o frágil garoto como um animal. Chutei-o no rosto. e elle foi contra a parede: o estalo do osso se quebrando quando ele colidiu. A inconsciência. O sangue saindo de seu nariz. Ainda continuei: pisoteei seu estomago.

Meu pé tinha o mesmo tamanho que seu tronco. O som da carne contra minha sola. O vomito cobrindo meu sapato. Eu parei. Ele estava morto. Só então percebi o que tinha feito. Eu matei meu próprio filho, matei meu único familiar vivo. Sua pulsação tinha cessado, simples dessa forma. O manto voltou a cobrir as cenas. Relembrei onde estava.

- Você se arrepende? – Uma voz grossa veio ao meu encontro. Não tinha origem, apenas se propagava no ambiente, vindo até mim. Não era apenas som. Rasgava minha alma, minha essência.

- S-sim. – Consegui balbuciar.

- Que pena. Isso nunca adiantou.



Texto-gêmeo: Ele

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